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Quarta-feira cinza

Desacreditava de tudo ouvindo o barulho da chuva. Eram duas da tarde, e todas as quartas, uma vez percebeu, chovia. Duas da tarde e ela ainda usava a mesma roupa que botou ontem à noite para sair. Não saiu. Mal dormiu. A madrugada era fria e os ossos doíam. O fêmur, o rádio e as têmporas. Acomodou-se numa poltrona de tecido gasto, com uma xícara de chocolate quente em mãos, vestindo meias coloridas e estampadas – pelo menos alguma coisa de cor em meio àquela vida gris que ela levava – e um cardigã rosa-bebê. Deixou a janela da sala entreaberta para entrar um pouco de ar e um pouco da chuva e um pouco de fé. Continuava desacreditada. Da vida, dos contos, das fadas e de tudo o que ela escrevia. Sofria com o tal complexo de inferioridade e achava-se insuficiente para tudo e todos. Não fumava nem bebia. Ficava tentada a fumar e a beber quando chegava em casa, sozinha, só para ter companhia. Companhia dos copos quebrados, dos livros espalhados e imagens espelhadas. 

A sala toda continha espelho e tudo o que ela enxergava eram as olheiras, tão grandes quanto o vazio que predominava no pequeno apartamento. Nunca quis apartamento, pensou. Odiava cumprimentos de bom dia. Odiava barulho – menos o da chuva - e ela nunca teve sorte para vizinhos. Crianças birrentas, casais estressados, móveis arrastados. Nem eu sou boa vizinha, afirmava. Queria mesmo uma casa com quintal e muros altos e flores na janela. Mas tinha sorte para o azar. Na primeira semana habitando no segundo andar, comprou vasos de flores. São perfumadas e atraem borboletas. Decidiu colocar na janela, a mesma de onde, meses depois tentaria se jogar. Os vasos enfeitaram a janela até cair a primeira chuva. E caiu o vaso. Caiu nas roupas da vizinha do andar de baixo, que estavam estendidas num varal portátil. Confusão confirmada. Já não era bem vista, agora era mal vista e muito mais odiada. 

Era a louca que falava só. A louca que nem deve pentear esses cabelos ressecados, cochichavam as vozes das senhoras mais velhas – vizinhas do andar de cima, que passavam mais tempo cuidando da vida alheia que da própria casa. A louca que não tirava aqueles fones de ouvidos amarelos, que mais pareciam um aparelho de surdez. E era meio surda – agradecia todas as noites por isso. Agradecia a Deus, embora a fé estivesse fraca. A chuva enfraquecia e ela enfraquecia junto. Tanto falavam sem a conhecerem, que ela decidiu mostrar a louca que era. Sentou-se na janela – a mesma onde esteve aquele vaso e a mesma por onde agora entrava vento e chuva, mas não fé – e recitou poesias de sua própria autoria. Ninguém entendia. Nem ela. Recitou em voz alta, duas ou três delas e ameaçou se jogar. Jogou-se. Mas o que haveria de acontecer se o chão era logo ali perto do segundo andar? Ralou os joelhos e machucou o fêmur e o rádio. Virou motivo de piada. Não bebeu álcool, mas afundou-se em intermináveis xícaras de café e chocolate quente. 

Haviam se passado sete meses desde que saíra da casa da mãe. Sempre foi muito dependente, mas também era mal agradecida. Reclamava de tudo. Da mãe, da voz dela, da comida e do pai. Discordava em tudo. Discordava em número, gênero e grau da opinião dos velhos – nem tão velhos, mas era assim que ela insistia em chamá-los. Percebeu tamanha arrogância e decidiu: vou sair de casa. O pai contrariou. A mãe não se importou; já é hora de ela tomar o próprio rumo, caminhar com as próprias pernas, comentou a velha numa das últimas refeições que fariam juntos. E assim foi. E se foi numa quarta-feira de cinzas, com chuva, usando fones de ouvido, com o cabelo despenteado e a maquiagem borrada. O pai comprou o apartamento, e ela reclamou porque queria uma casa com quintal e jardim. Voltou atrás e agradeceu. A mãe até hoje não enviou cartas nem fez telefonemas, embora, escondida, a inclua em todas as suas orações, ainda que a fé – dela e da filha e do marido – esteja fraca.

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